"Bless thee! Thou art translated"

Lançado o mote "Shakespeare-Identidades e Tradução", assisti ontem a uma mesa-redonda sobre Shakespeare em Portugal, tendo como pano de fundo, o complexo ofício da Tradução, que decorreu no Teatro Viriato (TV), em Viseu.
O leque de "actores" que protagonizaram este encontro era particularmente apelativo: as actrizes Leonor Keil (no dia 24 leva à cena no TV a peça Noite de Reis, um espectáculo concentrado na expressão corporal, em que as palavras escasseiam, pelo que é o corpo o intérprete por excelência) e Valérie Bradell (que integra o elenco de Romeu e Julieta); o professor universitário Rui Carvalho Homem, o encenador Jorge Fraga e Fernando Villas Boas, que traduziu para Português A Tempestade e Romeu e Julieta.
Inesgotáveis são as discussões teóricas em torno da definição do acto de traduzir, assim como as imagens a ele associadas. Desde a imagem de transladar até à imagem de verter ou transportar de uma língua para a outra, não faltam cenários para ilustrar a tortuosa tarefa do tradutor, lamentavelmente pouco ou nada reconhecida em Portugal. Onde estão os sindicatos? A Ordem dos Tradutores? O reconhecimento legal e institucional da profissão?
O que mais me entusiasmou nesta reflexão foi constatar que se pode "traduzir" ou "adaptar" das mais diversificadas formas. As preocupações que norteiam o tradutor literário (sim,desenganem-se os mais ingénuos, pois traduzir consiste, antes de mais, em resolver problemas que se sucedem, implacáveis e impiedosos!) são totalmente distintas das inquietações que consomem um encenador ou um actor, por exemplo. É possível traduzir palavras para expressão corporal, para dança e movimento.
O encenador Jorge Fraga traduziu Shakespeare, mas, segundo o próprio, numa perspectiva de adaptação e de adequação do texto aos actores que irão dar corpo às palavras.
O tradutor, Fernando Villas Boas, postulou uma tradução fiel (o adjectivo é inevitável!) ao original shakespeariano, mas orientada para a língua e a cultura portuguesas, para os seus recursos múltiplos. Na experiência deste tradutor, a língua portuguesa é ainda habitada por inúmeras expressões arcaizantes que, no entanto, continuam a fazer parte do uso corrente e não são sentidas como tal. É, nesse sentido, uma enorme vantagem para quem se lança à árdua empresa de traduzir o grande colosso da língua Inglesa, que será, segundo se afirmou, "uma língua à parte". "Shakespeariês" quiçá?
Outra questão abordada prende-se com tornar - ou não - Shakespeare acessível ao público e "suavizar" a complexidade intrínseca a toda a sua obra, de forma a que os comuns mortais "compreendam" a mensagem veiculada e a descodifiquem mais rapidamente. No entanto, trata-se de um tema em nada pacífico, pelo que não é possível encontrar uma resposta definitiva, sob pena de se incorrer no mais puro dogmatismo. Tal como se mencionou, há inúmeras formas de traduzir e inúmeros públicos, com perfis diversificados. Nesse sentido, caberá ao tradutor, encenador ou actor usar do mais elementar bom senso e não descurando a sensibilidade, levar a cabo essa tarefa com consciência do(s) destinatário(s).
A tradução é, por essência, um ofício solitário mas solidário, pois tem-se sempre em mente o Outro (a língua e a cultura do texto original) e os outros, o público que irá ler essa mesma tradução.
Para rematar, uma bela citação de Ezra Pound (mencionada pelo tradutor Fernando Villas Boas nesta sessão): “Vale a pena aprender Português para ler Camões.” Há que amar a nossa língua, pois desse doce afecto depende a perenidade de tantas e tantas obras, de tantos e tantos autores que souberam amá-la. Mas esse já seria um outro tema…

Comentários

Ana M Abrantes disse…
A absolvição do tradutor é saber que a sua é uma versão possível e que única fidelidade que deve é ao texto.
Que tal a "Noite de Reis"?

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