Chez moi

Ainda vou voltar àquela casa um dia.
(Por vezes, uma só frase dá-nos a mão, a medo, e a partir daí, percorremos um intrincado labirinto que nos leva a lugares inesperadamente familiares.)
Subir num ápice as escadas alcatifadas e encontrar a mesma mobília que entretanto mudou de lugar, farta da inevitável monotonia do tempo. Continuo a explorar esses compartimentos que evocam tantas e tantas recordações e sento-me num dos sofás, provavelmente até adormeço, exausta desta incursão sem aviso.
Acordo e sou tomada pela mesma vontade de descobrir. A expedição prossegue. O corredor, os móveis de sempre, o cheiro que se entranha nos corpos.
(Cada casa tem o seu próprio cheiro, estendendo-se às pessoas que a habitam, como se esta quisesse prolongar-se além-muros.)
Paro na sala do piano e, confronto-o, apesar de ter a mesma destreza de pianista que um homem da Pré-História em frente a um portátil, ouço de novo os trechos que tantas e tantas vezes serviram de banda sonora à vida. Tardes de estudo intermináveis com lanches deliciosamente confeccionados pelas maternas mãos, sempre abnegadas.
Os meus dedos ganham vida própria, saindo de mim e atravessando as texturas das colchas, das camilhas, das cortinas, mediadoras entre o universo da casa e a vida lá fora.
(Imagino sempre que a vida pára, não existe, pura e simplesmente, aonde não estou. À medida que vou calcorreando as ruas, as pessoas e a cidade ganham vida e movimento e a ordem natural das coisas é restabelecida.)
Ouço vozes ao longe, cada vez mais presentes, e acabo por encontrar os personagens que protagonizaram o enredo da minha vida. Conversamos longamente e tudo adquire os contornos de sempre. A ordem natural das coisas mantém-se, nada se alterou. Continuo a ser aquela menina que vivia naquela casa imponente, que corria desenfreadamente no jardim, que se magoava em quedas sucessivas de bicicleta, como se acalentasse o sonho de vencer o Tour de France! E estão todos à minha espera para jantar.
― Já vou! É só mais um bocadinho!
Porque é que o maldito realizador deste filme não avisou que nem sempre há um happy end?
Mas a casa habita-me ainda. E sempre a mesma vontade de lá voltar, apesar de estar agora reduzida a solidão e ao vazio, consumida pelo pó do tempo.
Durante este filme trágico-cómico, as viagens sucedem-se e continuaremos a abrir portas de memórias que insistem em convidar-nos a entrar.

Comentários

JL disse…
Adorei este texto que fico sem saber se é um poema em prosa ou uma descrição de memórias.
Seja como for adorei.
Bebi-o todo, sem deixar gota.
Um beijo

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