Babel(izando)

Confesso que estava com imensas expectativas em relação ao último filme do realizador mexicano Iñarritú, sobretudo depois de 21 Gramas, que para além das representações irrepreensíveis de Naomi Watts e Sean Penn, surpreendia pela temática (o peso da alma) e pela construção do enredo. Babel não diverge muito do filme anterior em termos de lógica de elaboração das histórias, em forma de puzzle, por meio de um invisível fio condutor que, no final, vem à superfície e se restabelece a ordem circular.
Egipto, fronteira EUA/México e Japão, três mundos antagónicos à partida, cujas tramas e seus protagonistas acabam por estar indelevelmente ligados, num denominador comum: a vertigem da intraduzibilidade.
Há um disparo em pleno Egipto profundo, longe dos grandes chamarizes turísticos e da civilização, um verdadeiro no man’s land, que é, verdadeiramente (ironias à parte), o tiro de partida para a trama que se vai tecendo, com recuos e avanços temporais, em Babel. O facto de a vítima desse disparo ser norte-americana não é, de todo, inocente, criando desde logo um imbróglio de questões políticas que, incompreensivelmente, complexificam o que deveria ser simples: salvar uma vida humana. No deserto, um homem em desespero que tenta desvendar as palavras estranhas e ver para além desse manto negro de incompreensibilidade.
Na fronteira entre os EUA e México, as históricas tensões entre estes povos levam a uma situação extrema em que saem lesadas as vítimas do costume, sempre suspeitas. Nesta parte do puzzle, evoca-se o drama dos imigrantes ilegais nos EUA que, apesar de contribuírem com sangue, suor e lágrimas para a economia norte-americana, têm sempre a pairar sobre eles o fantasma da suspeição.
No Japão, mais concretamente na metrópole fervilhante que é Tóquio, retrata-se a solidão extrema de uma surda que luta também (tal como todos os personagens deste filme) por veicular a sua carência extrema, através das mãos, a boca da alma.
A actriz que desempenha este papel – Rinko Kikuchi – é, sem dúvida, a grande revelação de Babel, pois consegue transmitir na plenitude o desespero do isolamento e a busca incessante, porém dolorosa, de afecto, através da expressão facial e dos seus dedos ávidos de diálogo.
Babel prendeu-me mais pela forma - como por exemplo aquele que, para mim, foi o ponto alto (mais uma vez regresso a Tóquio e à magnetizante representação de Rinko Kikuchi): a cena filmada na discoteca vista da perspectiva de uma pessoa com surdez em que o som frenético alterna com a sua total ausência, numa total orgia de luzes, em que se desenha uma dança (infrutífera) de sedução – do que propriamente pelo conteúdo.
Há uma insistência desconfortável, em meu entender, no olhar sobre a agonia, uma abordagem demasiado obcecada com a dor, com o sangue a escorrer, omnipresente, a tal ponto que perde credibilidade e o espectador só quer libertar-se desse colete de forças.
Creio que talvez seja por isso que Babel suscitou posições tão extremadas por parte da crítica cinematográfica. Não é, de todo, um filme de consensos, mas é, claramente, uma obra grandiosa (mais pela forma do que pelo conteúdo, insisto), que pisca o olho à Academia. Veremos hoje de madrugada se a Academia acede a esta tentativa aberta de sedução.
Vale a pena entrar nesta Babel dos tempos modernos, sobretudo para descobrir a promissora Rinko Kikuchi que, seguramente, merece o Óscar de Melhor Actriz Secundária.

Comentários

Rita Nery disse…
Um filme no minimo dificil de concretizar numa só palavra. Excelente fotografia, excelentes paralelismos, nomeadamente no que toca à dicotomia E.U.A. e Japão, excelentes fundos e perspectivas...mas, porque tem sempre de haver um mas...parece-me que o realizador juntou o melhor de filmes como 21Gramas, Crash...
Juntando o melhor de filmes fantásticos como os que atás referi, o resultado final nunca poderia ser mau, pelo contrário, mas inevitávelmente perde numa boa dose de originalidade.
Personagens de renome como Brad Pitt e Cat Blanchett, são relegados para um plano mais do que secundário, com desempenhos limitativos, pouco profundos e de pouca intensidade. Já a actriz revelação Rinko Kikuchi, aqui dou a "mão à palmatória", demonstrou-se uma personagem consistente, convincente e extremamente expressiva, pena é que a considere absolutamente desnecessária para o filme em questão, assim como o seu pai, amigos e afins...
A preocupação em albergar um cem número de coisas, e o desejo de quase infiltrar personagens de que logo à partida se vai gostar, quanto a mim fez com que o realizador às tantas descurasse no argumento. Uma história que é despoletada por uma arma, e onde tudo e todos são quase que forçados, com fraca subtileza, a andarem à volta de um tiro inocente.
Dito isto...NÃO SEI!!
Beijinhos e mais uma vez Parabéns por mais uma sintese tão bem conseguida da tua parte!
Ana M Abrantes disse…
Babel não é um filme feito para o brilho dos actores. O papel principal vai para as histórias de globalização intemporal em que o destino individual está preso aos outros e em que todos falam, mas ninguém escuta, ninguém compreende. É essa a essência do Babel mítico, recriado à escala contemporânea. Uma cacofonia de vozes e línguas e o desespero de não ser ouvido, que tão bem descreve a Babel das relações humanas à escala do indivíduo, à escala do mundo.
Sem dúvida, um bom filme.
Rita Nery disse…
Olá Ana m abrantes!Se me permites, concordo contigo quando dizes que, e passo a citar: "Babel não é um filme feito para o brilho dos actores."
"O papel principal vai para as histórias..." mas quanto a mim, estas só existem com pessoas, personagens, actores...logo não podemos relegá-los para um papel secundário, são eles que nos tocam mais directamente do que as histórias, estas vêm depois.
Um bom argumento não basta, e bons actores não podem ser usados como complemento de um bom argumento, um filme vive de muito mais...e a prova está no facto de ter apenas ganho um óscar pela banda sonora, bem merecido, mas deve ter sido bem mais facil consegui-la(banda sonora) do que o desempenho dos actores, se me faço entender.
É só a minha opinião!Não leves a mal!
Beijinhos:)
Vica disse…
Concordo com a Ana, acho que mostrar essa solidão no meio de tantas vozes foi um dos objetivos do filme. Também gostei muito da cena na boate.
Ana M Abrantes disse…
Claro que não, Rita! :-)

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