Da interioridade


Uma das coisas que mais sinto falta em Viseu é da existência de um espírito de efectiva vivência da cultura, cuja ausência se torna evidente numa simples ida a uma livraria que se pode converter num verdadeiro jogo de nervos. Há dias, fui a uma das (cada vez mais escassas) livrarias da cidade, na demanda de livros (sempre numa lógica plural) do autor japonês que constitui a minha obsessão predilecta: Haruki Murakami.
(Sempre fui do género de me entregar obsessivamente a um autor, a uma música que ouço vezes sem fim, até aos limites da loucura e da exaustão, mas isso nada tem de doentio…creio…)
O nome do autor coloca, desde logo, sérios entraves ao diálogo com a pessoa que nos atende numa dessas livrarias. Se optarmos pelo nome inteiro, tanto mais incompreensível e improvável. Fiquemo-nos pelo apelido. Murakami.
- Mura…quem?
Repetimos o apelido, esboçando um indisfarçável olhar de enfado e de revolta.
Constatamos, tristemente, que a livraria só tem 2 (!) livros desse autor.
Concedem-nos sempre a benesse de encomendar, o que é absolutamente deprimente, constituindo a prova cabal da escassez de títulos disponíveis nas livrarias.
Se fosse à procura de “pseudo-literatura”, seguramente teria mais sorte e poderia voltar para casa recheada de compras, ou para ser mais concreta, de puro lixo.
- Não, não quero encomendar, obrigada.
Acabei por comprar a obra Dança, dança, dança desse autor e espero, em breve, poder folhear e adquirir outras mais, mas não em Viseu. Depois desta quase infrutífera incursão, perdi mesmo a esperança.
Nesta cidade assiste-se à falência de projectos culturais tão interessantes e paradigmáticos como a Livraria da Praça, espaço iluminado, verdadeiro oásis de cultura, de tertúlia e de incremento dos horizontes intelectuais que acabou por esmorecer. Fecham livrarias para dar lugar a sapatarias, bares e afins. Na Livraria da Praça, havia sempre alguém que aconselhava, que nos surpreendia e que já lera “aquele” livro, abrindo caminho para muitos mais.
A cidade desenvolveu-se imenso nas últimas décadas, em termos materiais, sem dúvida. Porém, a cultura é repetidamente votada a um plano secundário. Não se lê, não se vai ao Teatro (apenas uma diminuta minoria), não se sabe que há literatura no Japão. Mas há sempre tempo para desbravar (mais) uma nova catedral de consumo. What else?

Comentários

Ana,
Tu de cota não tens nada... adorei o teu post e copiei-o no meu blog. Espero que não te importes.
Bazookas
Anónimo disse…
Haruki Murakami, li alguns dos seus surpreendentes livros. Surpreendentes pela forma como os acontecimentos se sucedem e encadeiam numa aparente falta de nexo e no fim tudo se conjuga. Duma imaginação incrível onde o surreal se mistura com o real, o sonho é vivo e tudo se combina com fluidez. Se gosta de autores japoneses leia a tetralogia de Mishima. Aventure-se também pelo cinema japonês que é fantástico!
Sobre a vida cultural de Viseu, só me lembro de cor garrida e intensa no tempo em que Ricardo Pais agitou esta cidade. Agora temos o nosso querido e sucedâneo Teatro Viriato que "Deus" o guarde bem guardadinho e o preserve de todas as ervas daninhas que por aí abundam!
Rita Nery disse…
Olá miga!Mais uma vez um óptimo texto, mais do que óptimo é uma constatação bastante clara do estado da cultura que se vive, ou melhor que não se vive, nesta cidade.
Infelizmente começamos a ficar habituados à falta de iniciativas, ou por outra, ao desmoronamento das poucas que existiam. Quando às vezes aqui tão perto e nos sítios mais improváveis encontramos aquilo que queremos, aí é que nos damos conta do quão pobres estamos a ficar.
Mas o que se espera quando o requisito essencial para se trabalhar por exemplo numa FNAC é ter-se o 9.ºano de escolaridade? Não é uma vergonha, é uma injustiça para quem se tenta qualificar e formar em áreas tão especificas que depois se generalizam de tal forma que até o nome ser torna crucial.
Beijinhos:)

Rita Nery
Jaymz disse…
Concordo! Triste mas verdade, o seu post sintetiza aquilo que penso de Viseu, uma cidade com mentalidade fechada e ainda muito tacanha.
Eva Lima disse…
Concordo com a tua análise da cidade!

Tb gosto de Murakami, curiosamente o último comprei-o no Continente....Não o encontrei na Biblioteca Municipal que, diga-se em boa verdade, é muito probrezinha.
cara Ana,
o meu nome é Fernando B. Figueiredo e fui um dos sócios da "falecida" livraria da praça.
Gostei imenso de ler o que escreveu, sobre a saudosa livraria da praça, em meu nome e das minhas ex-sócias o nosso obrigado.

O tema da política cultural da nossa cidade, delineado pela CMV, tem sido criticado por mim. Tenho ido à Assembleia Municipal (AMV) dizer o que penso sobre o assunto. Mas, a intervenção cidadã é muito mal vista pelas mais diversas entidades e a AMV não foge a esta regra.

Para relatar as minhas intervenções e os comentários do Sr. Presidente Ruas vá dando uma vista de olhos ao blog «pensarviseu» (www.pensarviseu.bolgspot.com) bem como ao programa «pensarviseu» do canal de notícias da VTV (www.vtv.pt)

cumprimentos,

fernando bandeira figueiredo

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