In Cold Blood

Creio que esse interesse incontrolável se prende com a curiosidade de saber com que insondáveis teias se tecem as vidas de seres geniais, superiores na arte da escrita e da palavra e como as experiências influenciaram o rumo da produção literária. Na maior parte, essas vidas são caóticas, extremas e os seus protagonistas vivem permanentemente na corda bamba. O caos é o motor por excelência da criação.
A esse leque, juntou-se o filme Capote que retrata o processo de concepção da obra In Cold Blood, baseada nos brutais assassínios de uma família na pacata aldeia de Holcomb, no Estado do Kansas. Truman Capote ganha corpo e voz (um tom doce e efeminado que agudizou o sentido de marginalidade do escritor) através da interpretação magistral de Philip Seymour Hoffmann (igualmente exímio em Magnolia e Felicidade) que absorveu e interiorizou não só a voz feminina de Capote, mas todos os trejeitos, os tiques, a emotividade à flor da pele. Sem dúvida, a performance de um virtuoso!
O que começou por ser o mote para um mero artigo para a New Yorker tornou-se a matéria-prima do "romance não ficcional" que Capote almejava escrever e com isso, revolucionar o panorama literário norte-americano. Há uma bivalência permanente entre o contacto reiterado com o assassino (relação ambígua que assumiu até contornos de atracção erótica), por um lado, e a vida mundana e boémia de Capote, em que ele era rei e senhor incontestado, por outro lado.
Tal como Capote, o assassino era um "outsider" com uma infância feita de estilhaços e de abandono. Essa qualidade de "misfit" foi desde logo apreendida por Capote, definindo com clarividência o elo que os ligava: "Eu e o Perry podíamos ter vivido na mesma casa. A diferença é que eu saí pela porta da frente e ele saiu pela porta das traseiras." Capote era um excêntrico que tomou partido da estranheza que o caracterizava (a voz, os gestos, a postura) para se projectar na high society norte-americana.
Capote sugou a brutalidade desses factos cruéis, sabendo reconhecer a existência de dois mundos que se antagonizavam: a América dos poderosos e a América dos marginais e dos inadaptados, capazes de perpetrar os actos mais hediondos. Os relatos, os testemunhos, as entrevistas, em suma, a intensa pesquisa levada a cabo por Capote revelou-se fundamental para a construção do romance In Cold Blood.
Surge uma questão pertinente: qual o móbil primordial do escritor? Fazer o relato "não ficcional", em forma de romance ("non-fictional novel"), de um crime terrível que abalou a América do final dos anos 50 para que não fosse devorado pelo inevitável esquecimento? Ou tão simplesmente inaugurar um estilo diferente de escrita que revolucionasse os parâmetros literários da época? A tentação da imortalidade e o amor à Arte podem ser de tal forma inebriantes que cegam os seus protagonistas. Mas a vida não imita a arte e, por vezes, pode ser crua, cruel, "a sangue frio".
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