sweet dreams


Deitava-se todas as noites com medo de adormecer. Sempre que estava naquela fase intermédia em que se tem um pé na lucidez e outro naquela zona indefinível onde todos os planos se misturam, começava a ouvir aqueles ruídos. Eram uma espécie de estalidos da madeira que à noite se liberta dos grilhões e proclama a viva voz o seu grito de Ipiranga. Tal como ele, que durante o dia estava demasiado ocupado com os outros e em fazê-los acreditar naquilo que ele desistira de acreditar há muito: na possibilidade de felicidade. Para ele, isso não passava de uma impossibilidade matemática. Com tantos seres humanos no mundo, acreditar cegamente que cada um deles iria ser feliz, parecia-lhe uma tontice sem precedentes. Mas ele sabia bem fingir que acreditava nessa patética possibilidade e, mesmo utilizando a mentira como a sua verdade militante, cumpria a missão a que propusera mais por egoísmo do que por altruísmo: esquecer-se de si próprio em função dos outros, essa terceira pessoa misteriosa que, de certa forma, o iluminava pelas sendas do seu próprio caos interior.
E lá vinham os estalidos da madeira. Outra vez e mais outra. E com eles, os passos, os interruptores da luz, indecisos, dançando para cima e para baixo, numa indecisão reconfortante e familiar. Ele tinha a penosa noção de que aqueles ruídos eram um motim do passado, que se sublevava, sempre à noite, no momento em que ele estava mais frágil. Como se a sua consciência se recusasse a aceitar a verdade e, tal como ele, embarcasse numa doce mentira em que a realidade voltava ao que sempre fora.
Não concebia adormecer sem ouvir aqueles estalidos da memória.
(Provavelmente, só ele é que os ouvia.)
Como não concebia viver sem fazer os outros acreditar naquilo que ele sempre rejeitara.
De que serve a verdade, afinal?
A madeira não pára de estalar. E aqueles interruptores? Importam-se de desligar a luz? Há aqui pessoas que querem dormir!

Comentários

Al Cardoso disse…
Pois entao que tenham um sono recuperador!

Acordem depois, com um abraco de amizade.

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