M & M


Tique taque, tique taque…o tempo adensava-se e o seu manto de chumbo envolvia-o agora e não havia fuga possível. Já não sabia se ouvia mesmo esse tiquetaquear ou se não passava de uma mera invenção ou se já seria fruto de um estado de dormência que o pânico do reencontro criara. A atmosfera sombria, porém acolhedora, daquele bar que a Matilde tinha sugerido afagava-o de certa forma no seu corpo quente e macio. Sempre se sentira no habitat natural em bares de jazz de luzes ténues e trémulas. Conhecia a Matilde desde sempre, algures na Pré-História das memórias, quase desde que despontara a consciência de si. Ela era tão linda, ai como era lânguida e etérea, deambulando, indiferente, naqueles corredores agitados da escola. Mesmo com o passar do tempo, sempre implacável com o comum dos mortais, Matilde conservara aquela meninice nas feições, no olhar e em cada traço do rosto que se abria em gargalhadas primaveris.
Não sei bem que estranhas forças do destino me impeliram para aqui. Terá sido saudade? Mas como ter saudade de algo que nunca se teve? Com mil diabos, ela nem me conhece, ou por outra, conhece-me da mesma forma que eu. Foi o olhar que nos uniu, tão somente. Confesso, é lamechas, como não sê-lo nestas alturas? Já nem sei o que estou para aqui a balbuciar ou se calhar já estou a contar a minha história – a nossa história – em altos berros, numa espécie de sonambulismo de verdade.
Poderia ter escolhido outros sapatos mais cómodos, por exemplos aqueles vermelhos rasos e bicudos que até são de verniz…mas por que raio haveria de estar confortável, se me iria sentir desconfortável por não estar no meu melhor para o Mário? Só o conheço de longe, de muito, muito longe, desses tempos remotos em que se vivia em pleno estado de inocência. Nunca trocámos uma palavra, apenas olhares demorados que nos faziam corar. Não sei se ele é de direita (queira Deus que não!), de esquerda, de também costuma falar do tempo ou de futebol quando não há mais nenhum outro assunto, se é tímido, se é o centro das atenções…A calçada fazia ecoar os passos de Matilde que se tornavam cada vez mais vacilantes e curtos.
O burburinho de fundo, o fumo que se elevava em densas espirais e o som do saxofone abafavam por completo o ecoar dos corações já roucos. As melodias espraiavam-se e, por entre as palavras que se soltavam, numa ânsia alucinada, houve um beijo que se selou e, de súbito, fez-se silêncio…restara apenas aquele (fictício?) tique taque, tique taque…

Comentários

Rita Nery disse…
Ficção? Já não sei se a realidade é ficção, ou se o contrário.
Mas estou certa que é precisamente na dúviva dessa ambígua fusão que o ser humano cabe enquanto objecto de amor.

Beijinhos

Rita Nery
Vica disse…
Adorei a sapatilha. Ótimo texto.
Anónimo disse…
hihi, o pézinho é teu?

Tá tão fofa a imagem...

Bjinho, as gajas dão em malucas!

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